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2017
Estendo-lhe o meu primeiro livro. É uma oferta e ele agradece. Estamos na área de restauração do shopping e já não nos encontrávamos há cerca de um ano.
R é um amigo de adolescência. Passámos muitas horas no seu sótão-quarto a fazer música, jogar computador e a conversar. Já passaram mais de vinte anos desde essa altura, mas, como acontece com algum tipo de amizades, não há qualquer estranheza entre nós enquanto falamos já sentados a uma mesa. Primeiro pergunta-me pela escrita. Tem curiosidade acerca da minha faceta de ficcionista e eu vou-lhe contando a minha experiência. A partir de certa altura passamos à música e aí sou eu a colocar-lhe uma série de dúvidas acerca de gravação e produção musical, áreas que ele domina. Gosto de rever o seu sentido de humor, que se mantém sempre à espreita e não perde uma oportunidade de intervir.
A razão do nosso encontro foi o ele ter-me dito por email que se ia reformar. Apesar de ser muito bem-sucedido, e ter ganho já bastante dinheiro na vida, como só há pouco dobrou os quarenta respondi-lhe a minha estranheza pela notícia. O desafio para este jantar aconteceu na sua resposta e, quando trago finalmente o assunto à conversa, diz-me, depois de uma primeira piada para despistar, que tem um cancro e que decidiu parar de trabalhar para poder estar com os filhos de sete e quatro anos. Deram-lhe pouco tempo, diz-me enquanto eu tento, e consigo, não chorar. Triste, triste, triste, mas orgulhoso da bravura e desassombro com que me dá os pormenores, pergunto-lhe a seguir por coisas que nunca lhe tinha perguntado acerca da sua infância e família, questões que eu sempre tive e nunca antes achara necessário colocar. As suas respostas vão muito além e ouço-o enquanto faz um balanço inesperado da sua vida, sempre analítico e lúcido, apesar do tanto pelo que teve de passar.
R é meu amigo, gosto dele. R é a pessoa com um QI mais alto que conheço. R dá-me um abraço enquanto nos despedimos a caminho do parque de estacionamento, talvez pela última vez. Eu sei-o, mas não consigo aceitar.
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